A fábula dos porcos assados (e os sistemas de informação)

Certa vez, aconteceu um incêndio num bosque onde havia alguns porcos, que foram assados pelo fogo. Os homens, acostumados a comer carne crua, experimentaram e acharam deliciosa a carne assada. A partir dai, toda vez que queriam comer porco assado, incendiavam um bosque.  O tempo passou, e o sistema de assar porcos continuou basicamente o mesmo.

Mas as coisas nem sempre funcionavam bem: às vezes os animais ficavam queimados demais ou parcialmente crus. As causas do fracasso do sistema, segundo os especialistas, a dos porcos, que não permaneciam onde deveriam, ou à inconstante natureza do fogo, tão difícil de controlar, ou, ainda, às árvores, excessivamente verdes, ou à umidade da terra ou ao serviço de informações meteorológicas, que não acertava o lugar, o momento e a quantidade das chuvas.

As causas eram, como se vê, difíceis de determinar – na verdade, o sistema para assar porcos era muito complexo. Fora montada uma grande estrutura: havia maquinário diversificado, indivíduos dedicados a acender o fogo e especialistas em ventos – os anemotécnicos. Havia um diretor-geral de Assamento e Alimentação Assada, um diretor de Técnicas Ígneas, um administrador-geral de Reflorestamento, uma Comissão de Treinamento Profissional em Porcologia, um Instituto Superior de Cultura e Técnicas Alimentícias e o Bureau Orientador de Reforma Igneooperativas.

Eram milhares de pessoas trabalhando na preparação dos bosques, que logo seriam incendiados. Havia especialistas estrangeiros estudando a importação das melhores árvores e sementes, fogo mais potente etc. Havia grandes instalações para manter os porcos antes do incêndio, além de mecanismos para deixá-los sair apenas no momento oportuno.

Um dia, um incendiador chamado João Bom-Senso resolveu dizer que o problema era fácil de ser resolvido – bastava, primeiramente, matar o porco escolhido, limpando e cortando adequadamente o animal, colocando-o então sobre uma armação metálica sobre brasas, até que o efeito do calor – e não as chamas – assasse a carne.

Tendo sido informado sobre as idéias do funcionário, o diretor-geral de Assamento mandou chamá-lo ao seu gabinete e disse-lhe: “Tudo o que o senhor propõe está correto, mas não funciona. Isso pode funcionar na teoria, mas na prática não faz sentido. O que o senhor faria, por exemplo, com os anemotécnicos, caso viéssemos a aplicar a sua teoria? E com os acendedores de diversas especialidades? E os especialistas em sementes? Em árvores importadas? E os desenhistas de instalações para porcos, com suas máquinas purificadoras de ar? E os conferencistas e estudiosos, que ano após ano têm trabalhado no Programa de Reforma e Melhoramentos? Que faço com eles, se a sua solução resolver tudo? Hein?.”

“Não sei”, disse João, encabulado.

“O senhor percebe agora que a sua idéia não vem ao encontro daquilo de que necessitamos? O senhor não vê que, se tudo fosse tão simples, nossos especialistas já teriam encontrado a solução há muito tempo?.”

“O senhor, com certeza, compreende que eu não posso simplesmente convocar os anemotécnicos e dizer-lhes que tudo se resume a utilizar brasinhas, sem chamas? O que o senhor espera que eu faça com os quilômetros de bosques já preparados, cujas árvores não dão frutos e nem têm folhas para dar sombra? E o que fazer com nossos engenheiros em porcopirotecnia? Vamos, diga-me!”.

“Não sei, senhor.”

“Bem, agora que o senhor conhece as dimensões do problema, não saia dizendo por aí que pode resolver tudo. O problema é bem mais sério do que o senhor imagina. Agora, entre nós, devo recomendar-lhe que não insista nessa sua idéia – isso poderia trazer problemas para o senhor no seu cargo.”

João Bom-Senso, coitado, não falou mais um “a”. Sem despedir-se, meio atordoado, meio assustado com a sua sensação de estar caminhando de cabeça para baixo, saiu de fininho e ninguém nunca mais o viu. Por isso é que até hoje se diz, quando há reuniões de Reforma e Melhoramentos, que falta o Bom-Senso.”

Desconheço o autor desta fábula, mas ainda vejo florestas sendo queimadas com muito mais frequência do que imaginaria na área de Tecnologia de Informação.

Ouvi um relato de um projeto que foi fragmentado para quatro empresas fornecedoras operando remotamente, cada um com a sua especialidade tecnológica (Mobilidade, barramento, back-end e Web). Uma desculpa para este arranjo foi que cada empresa fornecedora era “dona” de uma tecnologia e os acordos contratuais exigiam esta distribuição. Dois anos depois e com com milhões de reais gastos nenhum produto foi entregue. O diretor de assamento então resolveu assar no espeto os gerentes e algumas fábricas que participaram deste processo.

Também tive a oportunidade de ver um time de produto que herdou uma arquitetura Web absurdamente complexa de um  “arquiteto super inteligente” de uma fábrica de software. O efeito desta arquitetura é o que time demora 3 semanas para implementar um cadastro de complexidade média.

Estas histórias reais me lembram do conceito de complexidade acidental e complexidade essencial, popularizado na TI por Neal Ford.

A complexidade essencial representa a dificuldade inerente a qualquer problema. Na nossa fábula acima, acender fogo era necessário para assar os porcos.  A complexidade decorrente dos compromissos que assumimos que incorrem em dívidas técnicas é diferente. Consiste em todas as formas imposta externamente de que o software se torne complexo e não deve existir em um mundo perfeito. A isso chamamos de complexidade acidental. Tecnologias como o Java EJB, Microsoft BizTalk e ERPs cujos nomes não podem ser pronunciados são exemplos de complexidade acidental na TI.

Tomo a liberdade aqui de expandir a definição original do autor, pensada para arquiteturas de software, para arranjos essenciais e arranjos acidentais.

Por exemplo, a existência de analistas desenvolvedores, analistas de testes e líderes de projetos são arranjos essenciais para entregar software de qualidade. Já times de testes e times de desenvolvedores que trabalham em salas separadas e com processos cascatas são exemplos de arranjos acidentais. E os  “gerentes de projetos” que ficam atrás das suas mesas 8 horas por dia atualizando cronogramas Gantt de 1000 linhas e perguntando aos seus coordenados “Eh aí, tá pronto?” são exemplos também ruins de arranjos acidentais.

Se você está cansado de queimar florestas inteiras para assar porcos, recomendo a aplicação de práticas do Lean Software Development, um corpo de práticas muito legais para você descomplicar a sua TI e a forma como entrega e mantém software.

“Simplicity is a great virtue but it requires hard work to achieve it and education to appreciate it. And to make matters worse: complexity sells better.”
Edsger W. Dijkstra

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